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O ideal da família perfeita: entre dever e amar

setembro de 2025
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O ideal da família perfeita: entre dever e amar

Certa vez, recebi em meu consultório, para o início de um processo de psicoterapia online, uma mulher de aproximadamente quarenta e dois anos. Vamos chamá-la de mulher-mãe. Chegou exausta emocionalmente, com o olhar deprimido, dizendo não encontrar mais alegria na vida. Contou que, durante a apresentação de Dia das Mães na escola da filha, só queria estar em outro lugar que não naquela escola barulhenta. Chorou ao dizer isso, tomada pela culpa: “Como posso não querer estar lá, vendo minha filha que amo?”

Neste mesmo tempo, acompanhei e fui apoio psicológico online de uma jovem-mulher, estudante de medicina. Ela dizia amar o que fazia, mas, em silêncio, sonhava em abandonar o curso e fazer outra coisa.Sentia-se pressionada emocionalmente: “Mas meus pais deram tudo por mim... como posso decepcioná-los?”, disse, num tom de quem pedia desculpas por desejar.

Ambas chegavam marcadas pelo mesmo mal-estar: o de amar demais sob a lógica do dever. Nas famílias contemporâneas, o amor muitas vezes se confunde com a obrigação de dar conta de tudo.

Ser boa mãe, bom pai, boa filha — tornou-se um projeto de performance.Por trás da dedicação e da eficiência afetiva, instala-se um sentimento difuso de culpa: não ser suficiente, não estar à altura, não corresponder.

A mulher-mãe falava de cansaço e de dívida. A jovem-mulher, de medo e de culpa.Duas faces de um mesmo ideal: o de uma família perfeita, sem falhas, sem conflitos, sem desejo próprio.

A psicanalista Vera Iaconelli observa que o espaço familiar, que antes representava cuidado, se tornou o principal palco do mal-estar contemporâneo.Em Mal-estar na Maternidade, ela mostra como o amor foi transformado em tarefa, e o cuidado, em obrigação, e daí surge a sobrecarga materna.A mãe e, por extensão, todos os papéis familiares, é convocada a ser onipresente, equilibrada, emocionalmente disponível e intelectualmente exemplar.A filha, por sua vez, aprende a corresponder, a não frustrar, a ser espelho do sucesso familiar.

Com o tempo, a mulher-mãe começou a perceber que sua culpa não nascia da falta de amor, mas do excesso de exigência.A jovem-mulher, por outro lado, começou a se dar conta de que o medo de decepcionar escondia um outro medo: o de existir para além do que os pais esperavam.

É nesse ponto que o psicanalista Winnicott nos oferece um respiro.Ele nos lembra que o desenvolvimento emocional depende de um ambiente suficientemente bom, não perfeito. A mãe suficientemente boa, e podemos estender isso a qualquer relação familiar, é aquela que pode falhar de modo tolerável, permitindo que o outro construa sua própria forma de estar no mundo.

Ao se dar conta de que podia falhar, a mulher-mãe então pôde respirar.

Ao se dar conta que pode decepcionar as pessoas, a jovem-mulher pôde enfim desejar.

Vera Iaconelli diz que o problema não é falhar, mas não poder falhar.Nas famílias atravessadas pelo ideal de perfeição, o erro é vivido como catástrofe, e o limite como fracasso.

Com o tempo de acompanhamento psiocoterapeutico, as duas mulheres foram dando lugar as palavras, aos afetos, entendendo os limites pessoais.

A mulher-mãe começou a rir de suas tentativas de controle.A jovem-mulher, a respirar diante da possibilidade de mudar.Ambas descobriram que o amor verdadeiro nasce da presença possível, e não da exaustão ou da obediência.

A exaustão da mulher-mãe diminuiu, e ela conseguiu resgatar pequenas alegrias que haviam sido esquecidas: passeios curtos com a filha, momentos de leitura, conversas com amigos e instantes de silêncio sem culpa.Ao aceitar suas próprias limitações, ela pôde amar de forma mais leve e verdadeira.

A jovem-mulher, por sua vez, encontrou coragem para dizer o que antes parecia impossível: contou aos pais que desejava trocar de curso. O medo da decepção deu lugar a um sentimento novo: o de poder existir para além das expectativas familiares.Ao reconhecer que o amor não exige obediência, mas presença, ela começou a trilhar um caminho próprio, menos perfeito, porém mais vivo.

Se você se identifica com a pressão de corresponder a expectativa do outro, sente-se culpado em realizar os próprios desejos, sobrecarregado emocionalmente e sente que precisa de apoio psicológico. Entre em contato e agende uma sessão de psicoterapia online.

Referências bibliográficas

  • Iaconelli, V. (2018). Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna. São Paulo: Zahar.
  • Winnicott, D. W. (1953/1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Winnicott, D. W. (1965/1990). A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes.

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